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    Mensaje por Maria Lua Miér 29 Mar 2023, 16:32

    Cenário



    Passei por essas plácidas colinas
    e vi das nuvens, silencioso, o gado
    pascer nas solidões esmeraldinas.
    Largos rios de corpo sossegado
    dormiam sobre a tarde, imensamente,
    — e eram sonhos sem fim, de cada lado.

    Entre nuvens, colinas e torrente,
    uma angústia de amor estremecia
    a deserta amplidão na minha frente.
    Que vento, que cavalo, que bravia
    saudade me arrastava a esse deserto,
    me obrigava a adorar o que sofria?

    Passei por entre as grotas negras, perto
    dos arroios fanados, do cascalho
    cujo ouro já foi todo descoberto.
    As mesmas salas deram-me agasalho
    onde a face brilhou de homens antigos,
    iluminada por aflito orvalho.

    De coração votado a iguais perigos
    vivendo as mesmas dores e esperanças,
    a voz ouvi de amigos e inimigos
    Vencendo o tempo, fértil em mudanças,
    conversei com doçura as mesmas fontes,
    e vi serem comuns nossas lembranças.

    Da brenha tenebrosa aos curvos montes,
    do quebrado almocafre aos anjos de ouro
    que o céu sustêm nos longos horizontes,
    tudo me fala e entende do tesouro
    arrancado a estas Minas enganosas,
    com sangue sobre a espada, a cruz e o louro.

    Tudo me fala e entendo: escuto as rosas
    e os girassóis destes jardins, que um dia
    foram terras e areias dolorosas,
    por onde o passo da ambição rugia;
    por onde se arrastava, esquartejado,
    o mártir sem direito de agonia.

    Escuto os alicerces que o passado
    tingiu de incêndio: a voz dessas ruínas
    de muros de ouro em fogo evaporado.
    Altas capelas cantam-me divinas
    fábulas. Torres, santos e cruzeiros
    apontam-me altitudes e neblinas.

    Ó pontes sobre os córregos! ó vasta
    desolação de ermas, estéreis serras
    que o sol frequenta e a ventania gasta!
    Armado pó que finge eternidade,
    lavra imagens de santos e profetas
    cuja voz silenciosa nos persuade.

    E recompunha as coisas incompletas:
    figuras inocentes, vis, atrozes,
    vigários, coronéis, ministros, poetas.
    Retrocedem os tempos tão velozes
    que ultramarinos árcades pastores
    falam de Ninfas e Metamorfoses.

    E percebo os suspiros dos amores
    quando por esses prados florescentes
    se ergueram duros punhos agressores.
    Aqui tiniram ferros de correntes;
    pisaram por ali tristes cavalos.

    E enamorados olhos refulgentes
    — parado o coração por escutá-los
    prantearam nesse pânico de auroras
    densas de brumas e gementes galos.
    Isabéis, Dorotéias, Heliodoras,
    ao longo desses vales, desses rios,
    viram as suas mais douradas horas
    em vasto furacão de desvarios
    vacilar como em caules de altas velas
    cálida luz de trêmulos pavios.

    Minha sorte se inclina junto àquelas
    vagas sombras da triste madrugada,
    fluidos perfis de donas e donzelas.
    Tudo em redor é tanta coisa e é nada:
    Nise, Anarda, Marília… — quem procuro?
    Quem responde a essa póstuma chamada?

    Que mensageiro chega, humilde e obscuro?
    Que cartas se abrem? Quem reza ou pragueja?
    Quem foge? Entre que sombras me aventuro?
    Quem soube cada santo em cada igreja?
    A memória é também pálida e morta
    sobre a qual nosso amor saudoso adeja.]

    O passado não abre a sua porta
    e não pode entender a nossa pena.
    Mas, nos campos sem fim que o sonho corta,
    vejo uma forma no ar subir serena:
    vaga forma, do tempo desprendida.

    É a mão do Alferes, que de longe acena.
    Eloquência da simples despedida:
    “Adeus! que trabalhar vou para todos!…”
    (Esse adeus estremece a minha vida.)



    Do roamceiro da Inconfidência


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    o un ciego soñando
    y en ese vuelo y en ese sueño
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    y tren de tus ilusiones."
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    Mensaje por Maria Lua Jue 30 Mar 2023, 20:16

    "Nós e as sombras"



    E em redor da mesa, nós, viventes,

    comíamos e falávamos, naquela noite estrangeira,

    e em nossas sombras pelas paredes

    moviam-se, aconchegadas como nós,

    e gesticulavam, sem voz.



    Éramos duplos, éramos tríplices, éramos trêmulos,

    à luz dos bicos de acetilene,

    pelas paredes seculares, densas, frias,

    e vagamente monumentais.

    Mais do que as sombras éramos irreais.



    Sabíamos que a noite era um jardim de neve e lobos.

    E gostávamos de estar vivos, entre vinhos e brasas,

    muito longe do mundo,

    de todas as presenças vãs

    envoltos em ternura e lãs.



    Até hoje pergunto pelo singular destino

    das sombras que se moveram juntas, pelas mesmas paredes…

    Oh!, as sem saudades, sem pedidos, sem respostas…

    Tão fluidas! Enlaçando-se e perdendo-se pelo ar…

    Sem olhos para chorar…


    ***********************



    Nosotros y las sombras




    Y alrededor de la mesa, nosotros los vivientes,
    comíamos y hablábamos, en aquella noche extranjera,

    y nuestras sombras por las paredes

    se movían acompañadas como nosotros,

    y gesticulaban, sin voz.




    Eramos dobles, éramos triples, éramos trémulos,

    a la luz de los mecheros de acetileno,

    por las paredes seculares, densas y frías,

    y vagamente prodigiosas.

    Más que las sombras éramos irreales.



    Sabíamos que la noche era un jardín de lobos y de nieve.

    Y nos gustaba estar vivos, entre vinos y brasas,

    muy lejos del mundo,

    de toda presencia vana

    envueltos en mantas y ternura.



    Hoy todavía me pregunto por el singular destino

    de las sombras que se movieron juntas, por las mismas paredes.

    ¡Oh!, las sin melancolías, sin peticiones, sin respuestas...

    ¡Tan evasivas!, enlazándose y perdiéndose por el aire.

    Son ojos para llorar...



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    Mensaje por Maria Lua Vie 31 Mar 2023, 16:44

    TERRA


    DEUSA dos olhos volúveis
    pousada na mão das ondas:
    em teu colo de penumbras,
    abri meus olhos atónitos.
    Surgi do meio dos túmulos,
    para aprender o meu nome.

    Mamei teus peitos de pedra
    constelados de prenúncios.
    Enredei-me por florestas,
    entre cânticos e musgos.
    Soltei meus olhos no eléctrico
    mar azul, cheio de músicas.

    Desci na sombra das ruas,
    como pelas tuas veias:
    meu passo — a noite nos muros —
    casas fechadas — palmeiras —
    cheiro de chácaras húmidas —
    sono da existência efêmera.

    O vento das praias largas
    mergulhou no teu perfume
    a cinza das minhas máguas.
    E tudo caíu de súbito,
    junto com o corpo dos náufragos,
    para os invisíveis mundos.

    Vi tantos rôstos ocultos
    de tantas figuras pálidas!
    Por longas noites inúmeras,
    em minha assombrada cara
    houve grandes rios mudos
    como os desenhos dos mapas.

    Tinhas os pés sobre flôres,
    e as mãos prêsas, de tão puras.
    Em vão, suspiros e fomes
    cruzavam teus olhos múltiplos,
    despedaçando-se anônimos,
    diante da tua altitude.

    Fui mudando minha angústia
    numa fôrça heróica de asa.
    Para construir cada músculo,
    houve universos de lágrimas.
    Devo-te o modêlo justo:
    sonho, dor, vitória e graça.

    No rio dos teus encantos,
    banhei minhas amarguras.
    Purifiquei meus enganos,
    minhas paixões, minhas dúvidas.
    Despi-me do meu desânimo —
    fui como ninguém foi nunca.

    Deusa dos olhos volúveis,
    rôsto de espêlho tão frágil,
    coração de tempo fundo,
    — por dentro das tuas máscaras,
    meus olhos, sérios e lúcidos,
    viram a beleza amarga.

    E êsse foi o meu estudo
    para o ofício de ter alma;
    para entender os soluços,
    depois que a vida se cala.
    — Quando o que era muito é único
    e, por ser único, é tácito.


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    Mensaje por Maria Lua Vie 31 Mar 2023, 16:46

    ÊXTASE


    DEIXA-TE estar embalado no mar noturno
    onde se apaga e acende a salvação.

    Deixa-te estar na exalação do sonho sem forma:
    em redor do horizonte, vigiam meus braços abertos,
    e por cima do céu estão pregados meus olhos, guardando-te.

    Deixa-te balançar entre a vida e a morte, sem nenhuma saüdade.
    Deslisam os planetas, na abundância do tempo que cai.
    Nós somos um tênue pólen dos mundos...

    Deixa-te estar neste embalo de água geando círculos.
    Nem é preciso dormir, para a imaginação desmanchar-se em figuras
    ambíguas.

    Nem é preciso fazer nada, para se estar na alma de tudo.

    Nem é preciso querer mais, que vem de nós um beijo eterno
    e afoga a bôca da vontade e os seus pedidos...





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    Mensaje por Maria Lua Sáb 01 Abr 2023, 10:09

    SOM


    ALMA divina,
    por onde me andas?
    Noite sòzinha,
    lágrimas, tantas!

    Que sôpro imenso,
    alma divina,
    em esquecimento
    desmancha a vida!

    Deixa-me ainda
    pensar que voltas,
    alma divina,
    coisa remota!

    Tudo era tudo
    quando eras minha,
    e eu era tua,
    alma divina!


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    Mensaje por Maria Lua Sáb 01 Abr 2023, 10:10

    GUITARRA


    PUNHAL de prata já eras,
    punhal de prata!
    Nem fôste tu que fizeste
    a minha mão insensata.

    Vi-te brilhar entre as pedras,
    punhal de prata!
    — no cabo, flores abertas,
    no gume, a medida exata,

    a exata, a medida certa,
    punhal de prata,
    para atravessar-me o peito
    com uma letra e uma data.

    A maior pena que eu tenho,
    punhal de prata,
    não é de me ver morrendo,
    mas de saber quem me m




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    Mensaje por Maria Lua Dom 02 Abr 2023, 09:41

    DISTÂNCIA



    QUANDO o sol ia acabando
    e as águas mal se moviam,
    tudo que era meu chorava
    da mesma melancolia.
    Outras lágrimas nasceram
    com o nascimento do dia:
    só de noite esteve sêco
    meu rosto sem alegria.
    (Talvez o sol que acabara
    e as águas que se perdiam
    transportassem minha sombra
    para a sua companhia...)
    Oh!
    mas nem no sol nem nas águas
    os teus olhos a veriam...
    — que andam longe, irmãos da lua,
    muito clara e muito fria...


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    Mensaje por Maria Lua Dom 02 Abr 2023, 09:42

    EPIGRAMA N.o 5


    GOSTO de gota d'água que se equilibra
    na fôlha rasa, tremendo ao vento.

    Todo o universo, no oceano do ar, secreto vibra:
    e ela resiste, no isolamento.

    Seu cristal simples reprime a forma, no instante incerto:
    pronto a cair, pronto a ficar — límpido e exato.

    E a fôlha é um pequeno deserto
    para a imensidade do acto.



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    Mensaje por Maria Lua Dom 02 Abr 2023, 19:16

    CAMPO


    CAMPO da minha saüdade:
    vai crescendo, vai subindo,

    de tanto jazer sem nada.
    Desvêlo mudo e contínuo

    que vai revestido os montes
    e estendendo outros caminhos.

    Mergulhada em suas frondes,
    a tristeza é uma esperança

    bebendo a vazia sombra.
    Águas que vão caminhando

    dispersam nos mares fundos
    mel de beijo e sal de pranto.

    Levam tudo, levam tudo
    agasalhado em seus braços

    Campo imenso — com o meu vulto...
    E ao longe cantam os pássaros.


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    Mensaje por Maria Lua Lun 03 Abr 2023, 09:33

    RIMANCE



    ONDE é que dói na minha vida,
    para que eu me sinta tão mal?
    quem foi que me deixou ferida
    de ferimento tão mortal?
    Eu parei diante da paisagem:
    e levava uma flor na mão.

    Eu parei diante da paisagem
    procurando um nome de imagem
    para dar à minha canção.
    Nunca existiu sonho tão puro
    como o da minha timidez.

    Nunca existiu sonho tão puro,
    nem também destino tão duro
    como o que para mim se fez.
    Estou caída num vale aberto,
    entre serras que não teem fim.
    Estou caída num vale aberto:
    nunca ninguém passará perto,

    nem terá notícias de mim.
    Eu sinto que não tarda a morte,
    e só há por mim esta flor:
    eu sinto que não tarda a morte
    e não sei com é que suporte
    tanta solidão sem pavor.

    E sofro mais ouvindo um rio
    que ao longe canta pelo chão,
    que deve ser límpido e frio,
    mas sem dó nem recordação,
    como a voz cujo murmúrio
    morrerá com o meu coração.


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    Mensaje por Maria Lua Mar 04 Abr 2023, 17:37

    RENÚNCIA

    RAMA das minhas árvores mais altas,
    deixa ir a flor! que o tempo, ao desprendê-la,
    roda-a no molde de noites e de albas
    onde gira e suspira cada estrêla.

    Deixa ir a flor! deixa-a ser asa, espaço,
    ritmo, desenho, música absoluta,
    dando e recuperando o corpo esparso
    que, indo e vindo, se observa, e ordena, e escuta...

    Falo-te, por saber o que é perder-se.
    Conheço o coração da primavera,
    e o dom secreto do seu sangue verde,
    que num breve perfume existe e espera.

    Vertí para infinitos desamparos
    tudo que tive no meu pensamento.
    Por onde anda? No abismo. Dada ao vento...
    Era a flor dos instantes mais amargos.



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    o un ciego soñando
    y en ese vuelo y en ese sueño
    compartir contigo sol y luna,
    siendo guardián en tu cielo
    y tren de tus ilusiones."
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    Mensaje por Maria Lua Miér 05 Abr 2023, 15:04

    VINHO


    A TAÇA foi brilhante e rara,
    mas o vinho de que bebí
    com os meus olhos postos em ti,
    era de total amargura.

    Desde essa hora antiga e preclara,
    insensìvelmente descí,
    e em meu pensamento sentí
    o desgôsto de ser criatura.

    Eu sou de essência etérea e clara:
    no entanto, desde que te ví,
    como que desapareci...
    Rondo triste, à minha procura.

    A taça foi brilhante e rara:
    mas, com certeza enlouquecí.
    E dêsse vinho que bebí
    se originou minha loucura


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    Mensaje por Maria Lua Miér 05 Abr 2023, 15:05

    VALSA


    FEZ TANTO luar que eu pensei nos teus olhos antigos
    e nas tuas antigas palavras.
    O vento trouxe de longe tantos lugares em que estivemos
    que tormei a viver contigo enquanto o vento passava.

    Houve uma noite que cintilou sôbre o teu rosto
    e modelou tua voz entre as algas.
    Eu moro, desde então, nas pedras frias que o céu protege
    e estudo apenas o ar e as águas.

    Coitado de quem pôs sua esperança
    nas praias fóra do mundo...
    — Os ares fogem, viram-se as águas,
    mesmo as pedras, com o tempo, mudam.




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    Mensaje por Maria Lua Jue 06 Abr 2023, 21:22

    GRILO


    MÁQUINA de ouro a rodar na sombra,
    serra de cristal a serrar estrêlas...

    Caem pedaços de sono, entre os silêncios,
    em grandes flores, mornas e dóceis,
    com o pêso e a côr de vagas borboletas.

    Rostos de espuma, nomes de cinza,
    — a vida sobe nos caules da noite, pouco a pouco.

    Máquina de ouro tremendo no ar de vidro frio,
    cortando o brôto das palavras rente à bôca...

    Demanchando nos dedos arquitecturas que iam parando,
    e livros de imagens que o vento compunha, ilògicamente.

    Ah! que é dos ramos de estrêlas finamente desprendidas,
    pela sonora lâmina que estás vibrando sempre, sempre?

    Que é das noites extensas, de ares mansos de alegrias,
    sem ruas, sem habitantes, sem solidão, sem pensamento?

    Que é das mãos esperando o amanhecer definitivo
    e caídas também na torrente do tempo?


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    Mensaje por Maria Lua Jue 06 Abr 2023, 21:23


    DESCRIÇÃO


    HÁ UMA água clara que cai sôbre pedras escuras
    e que, só pelo som, deixa ver como é fria.

    Há uma noite por onde passam grandes estrêlas puras.
    Há um pensamento esperando que se forme uma alegria.

    Há um gesto acorrentado e uma voz sem coragem,
    e um amor que não sabe onde é que anda o seu dia.

    E a água cai, refletindo estrêlas, céu, folhagem...
    Cai para sempre!

    E duas mãos nela mergulham com tristeza,
    deixando um esplendor sôbre a sua passagem.

    (Porque existe um esplendor e uma inútil beleza
    nessas mãos que desenham dentro da água sua viagem
    para fóra da natureza,

    onde não chegará nunca esta água imprecisa,
    que nasce e deslisa, que nasce e deslisa...)


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    Mensaje por Maria Lua Jue 06 Abr 2023, 21:24

    EPIGRAMA N.o 6


    NESTAS pedras caíu, certa noite, uma lágrima.
    O vento que a secou deve estar voando noutros países,
    o luar que a estremeceu tem olhos brancos de cegueira,
    — esteve sôbre ela, mas não viu seu esplendor.

    Só, com a morte do tempo, os pensamento que a choraram
    verão, junto ao universo, como foram infelizes,
    que, uma lágrima foi, naquela noite a vida inteira,
    — tudo quanto era dar, — a tudo que era opôr.


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    Mensaje por Maria Lua Jue 06 Abr 2023, 21:25

    ATITUDE


    MINHA esperança perdeu seu nome...
    Fechei meu sonho, para chamá-la.
    A tristeza transfigurou-me
    como o luar que entra numa sala.

    O último passo do destino
    parará sem forma funesta,
    e a noite oscilará como um dourado sino
    derramando flores de festa

    Meus olhos estarão sôbre espêlhos, pensando
    nos caminhos que existem dentro das coisas transparentes.

    E um campo de estrêlas irá brotando
    atrás das lembranças ardentes.


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    Mensaje por Maria Lua Jue 06 Abr 2023, 21:27

    CORPO NO MAR



    ÁGUA DENSA do sonho, quem navega?
    Contra as auroras, contra as baías:
    barca imóvel, estrêla cega.

    Bate o vento na vela e não a arqueia.
    — Não foi por mim!
    Partiram-se as cordas, rodaram os mastros,
    os remos entraram por dentro da areia...

    Os remos torceram-se, e trançaram raízes.
    — Inútil forçá-los — alastram-se, fogem
    na sombra secreta de eternos países...

    Mudou-se a vela em nuvem clara!
    Choraram meus olhos, minhas mãos correram...
    — Alto e longe! — Não foi por mim.
    ..
    E apenas pára
    um corpo na barca vazia,
    à mercê das metamorfoses,
    olhos vertendo melancolia...

    O vento sopra no coração.

    Adeus a todos os meridianos!
    Deito-me como num caixão.

    Ah! sobrevive o mar no meu ouvido...
    «Marinheiro! Marinheiro!»

    (Ilhas...Pássaros...Portos... — nêsse ruído,


    — O mar...O mar!...O mar inteiro!...)

    Mas é tempo perdido!


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    Mensaje por Maria Lua Jue 06 Abr 2023, 21:30

    LUAR


    FACE do muro tão plana,
    com o sabugueiro florido.

    O luar parece que abana
    as ramagens na parede.

    A noite tôda é um zumbido
    e um florir de vagalumes.

    A bôca morre de sêde
    junto à frescura dos galhos.

    Andam nascendo os perfumes
    na sêda crespa dos cravos.

    Brota o sono dos canteiros
    como o cristal dos orvalhos.





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    Mensaje por Maria Lua Vie 07 Abr 2023, 14:48

    DIÁLOGO


    MINHAS palavras são a metade de um diálogo obscuro
    continuado através de séculos impossíveis.

    Agora compreendo o sentido e a ressonância
    que também trazes de tão longe em tua voz.

    Nossas perguntas e respostas se reconhecem
    como os olhos dentro dos espelhos. Olhos que choraram.

    Conversamos dos dois extremos da noite,
    como de praias opostas. Mas com uma voz que não se importa...

    E um mar de estrêlas se balança entre o meu pensamento e o teu.
    Mas um mar sem viagens.


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    Mensaje por Maria Lua Vie 07 Abr 2023, 14:50

    ESTRELA


    QUEM VIU aquele que se inclinou sôbre palavras trémulas,
    de relêvo partido e de contôrno perturbado,
    querendo achar lá dentro o rôsto que dirige os sonhos,
    para ver si era o seu que lhe tivessem arrancado?

    Quem foi que o viu passar com sues ímãs insones,
    buscando o polo que girava sempre no vento?
    — Seus olhos iam nos pés, destruindo tôdas as raízes líricas,
    e em suas mãos sangrava o pensamento.

    E era o seu rôsto, sim, que estava entre versos andróginos,
    prêso em círculos de ar, sôbre um instante de festa!
    Bôca fechada sob flores venenosas,
    e uma estrêla de cinza na testa.

    Bem que êle quis chamar pelo seu nome em voz muito alta,
    — mas o desejo não foi além do seu pescoço.
    E ficou diante de sua cabeça, estruturando-se
    como o frio dentro de um pôço.

    E não poude contar a ninguém seu fim quimérico.
    A ninguém. Pois a língua que fôra sua estava morta,
    e êle era um prisioneiro entre paredes transparentes,
    entre paredes transparentes, mas sem porta.

    Disto êle soube. O que nunca entendeu, porém, e o que lhe amarra
    o coração com ardents cordas de desgôsto
    é aquela estrêla de cinza — aquela estrela grande e plácida —
    derramando sombra em seu rôsto.




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    Mensaje por Maria Lua Dom 09 Abr 2023, 11:11

    DESVENTURA


    TU ÉS como o rôsto das rosas:
    diferente em cada pétala.

    Onde estava o teu perfume? Ninguém soube.
    Teu lábio sorriu para todos os ventos
    e o mundo inteiro ficou feliz.

    Eu, só eu, encontrei a gota de orvalho que te alimentava,
    como um segrêdo que cai do sonho.

    Depois, abri as mãos, — e perdeu-se.

    Agora, creio que vou morre


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    Mensaje por Maria Lua Dom 09 Abr 2023, 11:12

    NOTURNO


    VOLTO a cabeça para a montanha
    e abandono os pés para o mar.
    — Coitado de quem está sòzinho
    e inventa sonhos com que sonhar!

    Minhas tranças descem pela casa abaixo,
    entram nas paredes, vão te procurar.
    Envolvem teu corpo, beijam-te os ouvidos.
    — Querido, querido, devias voltar.

    Meus braços caminham pelas ruas quietas:
    — caminho de rios, fluidez de luar... —
    levam minhas mãos por todo o seu corpo:
    — Querido, querido, devias voltar.

    Partem os meus olhos, parte a minha bôca,
    Na noite deserta, ninguém vê passar,
    pedaço a pedaço, minha vida inteira,
    nem na tua casa me escutam chegar.

    Meu quarto vazio só pensa que durmo...

    Coitado de quem está sòzinho
    e assiste o seu próprio sonhar!


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    Mensaje por Maria Lua Dom 09 Abr 2023, 11:14

    NOÇÕES


    ENTRE MIM e mim, há vastidões bastantes
    para a navegação dos meus desejos afligidos.

    Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.
    Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge.

    Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza,
    só recolho o gôsto infinito das respostas que não se encontram.

    Virei-me sôbre a minha própria existência, e contemplei-a.
    Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,
    e êste abandono para além da felicidade e da beleza.

    Oh! meu Deus, isto é a minha alma:
    qualquer coisa que flutua sôbre êste corpo efêmero e precário,
    como o vento largo do oceano sôbre a areia passiva e inúmera...


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    Mensaje por Maria Lua Dom 09 Abr 2023, 11:15

    EPIGRAMA N.o 7


    A TUA RAÇA de aventura
    quis ter a terra, o céu, o mar.

    Na minha, há uma delícia obscura
    em não querer, em não ganhar.
    ..
    A tua raça quer partir,
    guerrear, sofrer, vencer, voltar.

    A minha, não quer ir nem vir.
    A minha raça quer passar



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    Mensaje por Maria Lua Lun 10 Abr 2023, 09:03

    REALEJO


    MINHA vida bela,
    Minha vida bela,
    nada mais adianta
    si não há janela
    para a voz que canta...

    Preparei um verso
    com a melhor medida:
    rôsto do universo,
    bôca da minha vida.

    Ah! mas nada adianta,
    olhos de luar,
    quando se planta
    hera no mar,

    nem quando se inventa
    um colar sem fio,
    ou se experimenta
    abraçar um rio...

    Alucinação
    da cabeça tonta!

    Tudo se desmonta
    em côres e vento
    e velocidade.
    Tudo: coração,
    olhos de luar,
    noites de saüdade.

    Aprendi comigo.
    Por isso, te digo,
    minha vida bela,
    nada mais adianta,
    si não há janela
    para a voz que canta...


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    Mensaje por Maria Lua Lun 10 Abr 2023, 09:05

    FADIGA


    ESTOU tão cansada, tão cansada,
    estou tão cansada! Que fiz eu?
    Estive embalando, noite e dia,
    um coração que não dormia
    desde que o seu amor morreu.

    Eu lhe dizia: «Deixa a morte
    levar teu amor! Não faz mal.
    É mais belo êsse heroísmo triste
    de amar uma coisa que existe
    só para morrer, afinal...»

    «Deixa a morte... Não chores... dorme!»
    Noite e dia eu cantava assim.
    Mas o coração não falava:
    chorava baixinho, chorava,
    mesmo como dentro de mim.

    Era um coração de incertezas,
    feito para não ser feliz;
    querendo sempre mais que a vida —
    — sem termo, limite, medida,
    com poucas vezes se quis.

    O tempo era ríspido e amargo.
    Vinha um negro vento do mar.
    Tudo gritava, noite e dia,
    — e nunca ninguém ouviria
    aquele coração chorar.

    Uma noite, dentro da sombra,
    dentro do chôro, a sua voz
    disse uma coisa inesperada,
    que logo correu, derramada
    num silêncio fino e veloz.

    «Meu amor não morreu: perdeu-se.
    Êle existe. Eu não o quero mais.»
    O chôro foi levando o resto.
    Eu nem pude fazer um gesto,
    e achei as horas desiguais.

    E achei que o vento era mais forte,
    que o frio causava aflição;
    quis cantar, mas não foi preciso.
    E o ar estava muito indeciso
    para dar vida a uma canção.

    A sorte virara no tempo
    como um navio sôbre o mar.
    O chôro parou pela treva.
    E agora não sei quem me leva
    daqui para qualquer lugar,

    onde eu não escute mais nada,
    onde eu não saiba de ninguém,
    onde deite a minha fadiga
    e onde murmure uma cantiga
    para ver si durmo, também.


    _________________



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    "Ser como un verso volando
    o un ciego soñando
    y en ese vuelo y en ese sueño
    compartir contigo sol y luna,
    siendo guardián en tu cielo
    y tren de tus ilusiones."
    (Hánjel)





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    CECILIA MEIRELES  - Página 23 Empty Re: CECILIA MEIRELES

    Mensaje por Maria Lua Lun 10 Abr 2023, 09:07

    HORÓSCOPO


    DEVIAM ser Venus
    e Júpiter, sim,
    que ao menos, ao menos,
    olhassem por mim,
    gerando caminhos
    claros e serenos
    por onde passar
    quem vinha nutrida
    de secretos vinhos,

    perdida, perdida,
    de amor e pensar.

    Saturno, porém,
    Saturno, o sombrio,
    se precipitou.

    Não sabe ninguém
    que rio, que rio
    de luto circunda
    a terra profunda
    que piso e que sou;

    que noite reveste
    o mundo em que passo
    e os mundos que penso...

    Que longo, alto, imenso,
    calado cipreste
    sobe, ramo a ramo,
    entre o meu abraço
    e o abraço que amo!


    _________________



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    y en ese vuelo y en ese sueño
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    CECILIA MEIRELES  - Página 23 Empty Re: CECILIA MEIRELES

    Mensaje por Maria Lua Lun 10 Abr 2023, 09:09

    RESSUREIÇÃO


    NÃO CANTES, não cantes, porque veem de longe os náufragos,
    veem os prêsos, os tortos, os monges, os oradores, os suicidas.
    Veem as portas, de novo, e o frio das pedras, das escadas,
    e, numa roupa preta, aquelas duas mãos antigas.

    E uma vela de móvel chama fumosa. E os livros. E os escritos.
    Não cantes. A praça cheia torna-se escura e subterrânea.
    E meu nome se escuta a si mesmo, triste e falso.

    Não cantes, não. Porque era a música da tua
    voz que se ouvia. Sou morta recente, ainda com lágrimas.

    Alguém cuspiu por distração sobre as minhas pestanas.
    Por isso vi que era tão tarde.

    E deixei nos meus pés ficar o sol e andarem môscas.
    E dos meus dentes escorrer uma lenta saliva.
    Não cantes, pois trancei o meu cabelo, agora,
    e estou diante do espêlho, e sei melhor que ando fugida.



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    CECILIA MEIRELES  - Página 23 Empty Re: CECILIA MEIRELES

    Mensaje por Maria Lua Mar 11 Abr 2023, 10:06

    SERENATA



    PERMITE que feche os meus olhos,
    pois é muito longe e tão tarde!
    Pensei que era apenas demora,
    e cantando pus-me a esperar-te.

    Permite que agora emudeça:
    que me conforme em ser sòzinha.
    Há uma doce luz no silêncio
    e a dôr é de origem divina.

    Permite que volte o meu rôsto
    para um céu maior que êste mundo,
    e aprenda a ser docil no sonho
    como as estrêlas no seu rumo.


    _________________



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