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Trabalho
Sou quase atrevida em termos de vida. Andei sendo meio pioneira numas coisas do universo feminino. Tive que parar de estudar — o que foi terrível — assim que terminei o ginásio. Eu era arrimo de família, tive que desde muito cedo sustentar a mim e a minha mãe. Isso fez com que me tornasse uma pessoa independente rapidamente. Apesar de morar com minha mãe, com 18 anos tinha dois empregos e nos sustentava. Foi quando comecei a formar a minha biblioteca. Mas ainda emprestava da Biblioteca Pública, emprestei daqui por mais de uma década. Tem uns que nem devolvi.
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Clássicos
A gente tem que apresentar para a moçada a poesia na linguagem deles. Começa por aí. Algo que os represente. Depois, quando estiveram seduzidos, pode sugerir coisas mais elaboradas. Não se tinha muito essa consciência na minha época. Eles davam os clássicos e a gente que se virasse. Se identificando ou não.
Primeiro conto
Eu tinha esse papo de que não gostava de poesia, e inventei uma história. Não sei se foi por causa dos filmes. Eu via uns filmes na televisão, a gente ia no cinema também. Naquele tempo não era tão rígido. Eu assistia cada coisa com meus tios, bang bang com muita violência. Meu primeiro conto é quase de terror. Acho que, para influenciar o conto, o que mexeu com o imaginário foi o cinema. Que me levou a buscar essa coisa ficcional. Era ridículo, um cara que entrava com uma bomba dentro de um avião, tinha toda uma coisa da massa cinzenta, homem cinza e pensamento cinza. É o precursor de 50 tons de cinza, mas sem a mulher, só o homem. Era muito ruim mesmo. Comecei a escrever umas coisas quando eu ia para um terreno baldio que tinha atrás da minha casa. A gente morava lá no Tabuão, e tinha um regatinho nesse terreno baldio. Eu ia e ficava contemplando a paisagem. A natureza sempre me alimentou. Hoje eu planto. Quando estou precisando de energia, começo a plantar, mexer na terra, limpar, podar. Meio que tem uma prévia dos haicais já nessa época — 13, 14 ou 15 anos, não saberia dizer. Depois que o Paulo [Leminski] me mostrou haicai, comecei a ler e percebi o quanto o sabor do haicai já estava lá na minha infância. Eu só não sabia fazer haicai, mas já tinha o espírito.
Oficinas de haicais
Para fazer oficina de haicai, por exemplo, percebi o quanto o zen, a compreensão do zen, abre teu campo para o haicai. Te prepara como instrumento para fazer haicai. Minha oficina se divide em três versos. O primeiro verso é a teoria, e a teoria parte do corpo do haicai. A parte técnica são 15 minutos. As outras três horas e meia, três horas e quarenta e cinco converso sobre o zen, apresentando koan, deixando as pessoas em estado de fazer haicai. No segundo verso, que é o segundo dia, faço um aquecimento de tradução com a turma. Claro que pego os haicais que já traduzi, porque quero mostrar para eles o desafio, então tem que ser alguns que eu já enfrentei. Mostro em japonês, dou a tradução literal de cada palavra e peço para eles formatarem como haicai. Mas não individualmente. A gente fica discutindo junto, o grupo, fazendo isso em uns três ou quatro haicais. A partir daí partimos para o exercício prático, elaborando juntos. Três pessoas ficam discutindo e eu vou com eles para a natureza. Quase sempre dá certo. Toda oficina peço um carro para que possamos ir a um local com muita natureza. Fico treinando a observação deles. Às vezes o pessoal resolve ir caminhando e conversando, então digo: “Estamos andando, mas estamos dentro da oficina. É para olhar em volta amorosamente. Para prestar atenção. Não é para ficar conversando sobre política agora”.
Haicai tropical
Um pequeno grupo no Brasil tropicalizou o haicai. Acho que o Paulo [Leminski] fez muito isso. Um que faz muito isso também é o Rodolfo Guttilla, com quem fiz um livro em parceria — se tudo der certo, vai ser lançado no começo do ano [2019] que vem pela Companhia das Letras. Ele é um quebrador de regras. Aqueles meus [haicais] que quebram regra estão nesse livro também. Tanto que a gente resolveu juntar. Tem mais de 100 haicais, metade de cada um. Faço parte, sim, desse grupo que tropicalizou o haicai.
Regras
Só que a oficina meio que me enquadrou. O [Matsuo] Bashô falou: “Aprende as regras, assimile-as profundamente e depois livre-se delas”. Isso nem é uma tropicalização. É o pai do haicai falando. O que ele quis dizer é que, na hora em que você está fazendo o haicai, não deve ficar preocupado com as regras. Mas é bom que você as tenha assimilado. No haicai nipônico, a regra é essa: no primeiro verso tem a situação, no segundo algo acontece e no terceiro há uma manifestação. No Brasil, a gente sabe que não é bem assim.
Tempo
A poesia, hoje, não vem na mesma velocidade que vinha antes. Passo períodos maiores sem produzir. Mas, ao mesmo tempo, sinto que estou produzindo o tempo inteiro. Meu pensamento ficou mais claro, apesar de ter mais dúvidas. A própria consciência de termos mais dúvidas é um tipo de clareza. O que quero dizer é que, quando me apaixonava por pessoas, também parecia que isso se expressava mais no escrever. Não que eu ficasse escrevendo sobre o amor, ou sobre pessoas, ou sobre paixão, mas o estar apaixonada me colocava num estado de produção poética que agora eu tenho que criar. Não é uma coisa que vem de fora, agora sou eu que tenho que produzir isso. Ao mesmo tempo, também me apaixono por ideias.
Biblioteca Pública do Paraná
https://www.bpp.pr.gov.br/Candido/Pagina/Um-Escritor-na-Biblioteca-Alice-Ruiz
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