317.
Uma das minhas preocupações constantes é o compreender como é que
outra gente existe, como é que há almas que não sejam a minha, consciências
estranhas à minha consciência que, por ser consciência, me parece ser a única.
Compreendo bem que o homem que está diante de mim, e me fala com
palavras iguais às minhas, e me faz gestos que são como eu faço ou poderia
fazer, seja de algum modo meu semelhante. O mesmo, porém, me sucede
com as gravuras que sonho das ilustrações, com as personagens que vejo dos
romances, com as pessoas dramáticas que no palco passam’ através dos atores
que as figuram.
Ninguém, suponho, admite verdadeiramente a existência real de outra
pessoa. Pode conceder que essa pessoa seja viva, que sinta e pense como ele;
mas haverá sempre um elemento anónimo de diferença, uma desvantagem
materializada. Há figuras de tempos idos, imagens espíritos em livros, que são
para nós realidades maiores que aquelas indiferenças encarnadas que falam
connosco por cima dos balcões, ou nos olham por acaso nos elétricos, ou nos
roçam, transeuntes, no acaso morto das ruas. Os outros não são para nós mais
que paisagem, e, quase sempre, paisagem invisível de rua conhecida.
Tenho por mais minhas, com maior parentesco e intimidade, certas figuras
que estão escritas em livros, certas imagens que conheci de estampas, do que
muitas pessoas, a que chamam reais, que são dessa inutilidade metafísica
chamada carne e osso. E «carne e OSSO», de facto, as descreve bem: parecem
coisas cortadas postas no exterior marmóreo de um talho, mortes sangrando
como vidas, pernas e costeletas do Destino.
Não me envergonho de sentir assim porque já vi que todos sentem assim.
O que parece haver de desprezo entre homem e homem, de indiferente que
permite que se mate gente sem que se sinta que se mata, como entre os
assassinos, ou sem que se pense que se está matando, como entre os soldados,
é que ninguém presta a devida atenção ao facto, parece que abstruso, de que
os outros são almas também.
Em certos dias, em certas horas, trazidas até mim por não sei que brisa,
abertas a mim por o abrir de não sei que porta, sinto de repente que o
merceeiro da esquina é um ente espiritual, que o marçano, que neste momento
se debruça à porta sobre o saco de batatas, é, verdadeiramente, uma alma
capaz de sofrer.
Quando ontem me disseram que o empregado da tabacaria se tinha
suicidado, tive uma impressão de mentira. Coitado, também existia! Tínhamos
esquecido isso, nós todos, nós todos que o conhecíamos do mesmo modo que
todos que o não conheceram. Amanhã esquecê-lo-emos melhor. Mas que
havia alma, havia, para que se matasse. Paixões? Angústias? Sem dúvida... Mas
a mim, como à humanidade inteira, há só a memória de um sorriso parvo por
cima de um casaco de mescla, sujo, e desigual nos ombros. É quanto me resta,
a mim, de quem tanto sentiu que se matou de sentir, porque, enfim, de outra
coisa se não deve matar alguém... Pensei uma vez, ao comprar-lhe cigarros,
que encalveceria cedo. Afinal não teve tempo para encalvecer. E uma das
memórias que me restam dele. Que outra me haveria de restar se esta, afinal,
não é dele mas de um pensamento meu?
Tenho subitamente a visão do cadáver, do caixão em que o meteram, da
cova, inteiramente alheia, a que o tinham de ter levado. E vejo, de repente,
que o caixeiro da tabacaria era, em certo modo, casaco torto e tudo, a
humanidade inteira.
Foi só um momento. Hoje, agora, claramente, como homem que sou, ele
morreu. Mais nada.
Sim, os outros não existem... É para mim que este poente estagna,
pesadamente alado, as suas cores nevoentas e duras. Para mim, sob o poente,
treme, sem que eu veja que corre, o grande rio. Foi feito para mim este largo
aberto sobre o rio cuja maré chega. Foi enterrado hoje na vala comum o
caixeiro da tabacaria? Não é para ele o poente de hoje. Mas, de o pensar, e
sem que eu queira, também deixou de ser para mim...
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