436.
(chuva)
E por fim, sobre a escuridão dos telhados lustrosos, a luz fria da manhã
tépida raia como um suplício do Apocalipse. É outra vez a noite imensa da
claridade que aumenta. E outra vez o horror de sempre — o dia, a vida, a
utilidade fictícia, a atividade sem remédio. E outra vez a minha personalidade
física, visível, social, transmissível por palavras que não dizem nada, usável
pelos gestos dos outros e pela consciência alheia. Sou eu outra vez, tal qual
não sou. Com o princípio da luz de trevas que enche de dúvidas cinzentas as
frinchas das portas das janelas — tão longe de herméticas, meu Deus! -, vou
sentindo que não poderei guardar mais o meu refúgio de estar deitado, de não
estar dormindo mas de o poder estar, de ir sonhando, sem saber que há
verdade nem realidade, entre um calor fresco de roupas limpas e um
desconhecimento, salvo de conforto, da existência do meu corpo. Vou
sentindo fugir-me a inconsciência feliz com que estou gozando da minha
consciência, o modorrar de animal com que espreito, entre pálpebras de gato
ao sol, os movimentos da lógica da minha imaginação desprendida Vou
sentindo sumirem-se-me os privilégios da penumbra, e os rios lentos sob as
árvores das pestanas entrevistas, e o sussurro das cascatas perdidas entre o
som do sangue lento ‘ nos ouvidos e o vago perdurar de chuva. Vou-me
perdendo até vivo.
Não sei se durmo, ou se só sinto que durmo. Não sonho o intervalo certo,
mas reparo, como se começasse a despertar de um sono não dormido, os
primeiros ruídos da vida da cidade, a subir, como uma cheia do lugar vago, lá
em baixo, onde ficam as ruas que Deus fez. São sons alegres, coados pela
tristeza da chuva que há, ou, talvez, que houve — pois a não oiço agora -. Só
o cinzento excessivo da luz frinchada até mais longe que me dá, nas sombras
de uma claridade frouxa, insuficiente para a altura da madrugada, que não sei
qual é... São sons alegres e dispersos e doem-me no coração como se me
viessem, com eles, chamar a um exame ou a uma execução. Cada dia, se o
oiço raiar da cama onde ignoro, me parece o dia de um grande acontecimento
meu que não terei coragem para enfrentar. Cada dia, se o sinto erguer-se do
leito das sombras, com um cair de roupas da cama pelas ruas e pelas vielas,
vem chamar-me a um tribunal. Vou ser julgado em cada hoje que há. E o
condenado perene que há em mim agarra-se ao leito como à mãe que perdeu,
e acaricia o travesseiro como se a ama o defendesse de gentes.
A sesta feliz do bicho grande à sombra de árvores, o cansaço fresco do
esfarrapado entre a erva alta, o torpor do negro na tarde morna e longínqua, a
delícia do bocejo que pesa nos olhos frouxos tudo que acaricia o
esquecimento, sono, o sossego do repouso na cabeça, encostando, pé ante pé,
as portas da janela na alma, o afago anónimo de dormir.
Dormir, ser longínquo sem o saber, estar distante, esquecer com o próprio
corpo; ter a liberdade de ser inconsciente, um refúgio de lago esquecido,
estagnado entre frondes árvores, nos vastos afastamentos das florestas.
Um nada com respiração por fora, uma morte leve de que se desperta com
saudade e frescura, um ceder dos tecidos da alma à massagem do
esquecimento.
Ah, e de novo, como o protesto reatado de quem se não convenceu, oiço o
alarido brusco da chuva chapinhar no universo aclarado. Sinto um frio até aos
ossos supostos, como se tivesse medo. E agachado, nulo, humano a sós
comigo na pouca treva que ainda me resta, choro. Sim, choro, choro de
solidão e de vida, e a minha mágoa fútil como um carro sem rodas jaz à beira
da realidade entre os estercos do abandono. Choro de tudo, entre perda do
regaço, a morte da mão que me davam, os braços que não soube como me
cingissem, o ombro que nunca poderia ter... E o dia que raia definitivamente,
a mágoa que raia em mim como a verdade crua do dia, o que sonhei, o que
pensei, o que se esqueceu em mim — tudo isso, numa amálgama de sombras,
de ficções e de remorsos, se mistura no rastro em que vão os mundos e cai
entre as coisas da vida como o esqueleto de um cacho de uvas, comido à
esquina pelos garotos que o roubaram.
O ruído do dia humano aumenta de repente, como um som de sineta de
chamada. Estala adentro da casa o fecho suave da primeira porta que se abre
para viverem. Oiço chinelos num corredor absurdo que conduz até meu
coração. E num gesto brusco, como quem enfim se matasse, arrojo de sobre o
corpo duro as roupas profundas da cama que me abriga. Despertei. O som da
chuva esbate-se para mais alto no exterior indefinido. Sinto-me mais feliz.
Cumpri uma coisa que ignoro. Ergo-me, vou à janela, abro as portas com uma
decisão de muita coragem. Luze um dia de chuva clara que me afoga os olhos
em luz baça. Abro as próprias janelas de vidro. O ar fresco humedece-me a
pele quente. Chove, sim, mas ainda que seja o mesmo é afinal tão menos!
Quero refrescar-me, viver, e inclino o pescoço à vida, como a uma canga
imensa .
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