***
O amor perde identidade na diferença, o que é impossível já na lógica,
quanto mais no mundo. O amor quer possuir, quer tornar seu o que tem de
ficar fora para ele saber que se torna seu e não é. Amar é entregar-se. Quanto
maior a entrega, maior o amor. Mas a entrega total entrega também a
consciência do outro. O amor maior é por isso a morte, ou o esquecimento,
ou a renúncia os amores todos que são os absurdiandos do amor.
No terraço antigo do palácio, alçado sobre o mar, meditaremos em silêncio
a diferença entre nós. Eu era príncipe e tu princesa, no terraço à beira do mar.
O nosso amor nascera do nosso encontro, como a beleza se criou do
encontro da lua com as águas.
O amor quer a posse, mas não sabe o que é a posse. Se eu não sou meu,
como serei teu, ou tu minha? Se não possuo o meu próprio ser, como
possuirei um ser alheio? Se sou já diferente daquele de quem sou idêntico,
como serei idêntico daquele de quem sou diferente?
O amor é um misticismo que quer praticar-se, uma impossibilidade que só
é sonhada como devendo ser realizada .
Metafísico. Mas toda a vida é uma metafísica às escuras com um rumor de
deuses e o desconhecimento da rota como única via.
A pior astúcia comigo da minha decadência é o meu amor à saúde e à
claridade. Achei sempre que um corpo belo e o ritmo feliz de um andar jovem
tinham mais competência no mundo que todos os sonhos que há em mim. É
com uma alegria da velhice pelo espírito que sigo às vezes – sem inveja nem
desejo — os pares casuais que a tarde junta e caminham braço com braço para
a consciência inconsciente da juventude. Gozo-os como gozo uma verdade,
sem que pense se me diz ou não respeito. Se os comparo a mim, continuo
gozando-os, mas como quem goza uma verdade que o fere, juntando à dor da
ferida a consciência de ter compreendido os deuses.
Sou o contrário dos espiritualistas simbolistas para quem todo o ser, e todo
o acontecimento, é a sombra de uma realidade de que é a sombra apenas.
Cada coisa, para mim, é, em vez de um ponto de chegada, um ponto de
partida. Para o ocultista tudo acaba em tudo; tudo começa em tudo, para mim.
Procedo, como eles, por analogia e sugestão, mas o jardim pequeno que
lhes sugere a ordem e a beleza da alma, a mim não lembra mais que o jardim
maior onde possa ser, longe dos homens, feliz a vida que o não pode ser.
Cada coisa sugere-me não a realidade de que é a sombra, mas a realidade para
que é o caminho.
O jardim da Estrela, à tarde, é para mim a sugestão de um parque antigo,
nos séculos antes do descontentamento da alma.
FIN
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